sábado, 28 de fevereiro de 2004

À guisa de um epílogo...


A visão do calendário inspira um sobressalto. Sentiu o fluxo de oxigênio no cérebro interrompido por um segundo, quase como num soluço psíquico. Tudo sumira a volta: as paredes, o som, o ar, o chão. Ao voltar a si, os nervos já crispados por baixo da pele úmida de suor o imobilizam e a visão perde o foco, granulando-se. O mundo esfria de repente.

Percebeu um princípio de febre pulsar na nuca. O diafragma inquieto dava uma irregularidade incômoda a sua respiração. Espasmos corriam pelos músculos das pernas como restos de eletricidade estática. Na testa, as veias saltavam como um sinal do esforço em demover de cima de si, ainda que por alguns poucos instantes, a certeza que lhe recaira como uma bigorna ao meter os olhos na folhinha diária.

Só resta um mês para terminar o trabalho de conclusão de curso.



quarta-feira, 25 de fevereiro de 2004

Quarta-feira


As ruas são cinzas
Os muros, também.
Fachadas ranzinzas
Calçadas, além.
Playgrounds ainda
Sem mais vai-e-vem.

Tons de cinza, apáticos
Numa bicicleta sem freios.
São todos monocromáticos
Os sorrisos de aparelhos.
Escorrem desejos estáticos
Nas vitrines de espelhos.

No olhar da cidade, um cinza profundo.
Cadê você para colorir o meu mundo?

Ontem eu vi "O encantador de cavalos". O filme é tão ruim que me deu até torcicolo...


terça-feira, 24 de fevereiro de 2004

Entrudo


No post passado eu falei que não sabia qual era a relação entre o mela-mela e o Carnaval. E não é que eu descobri? A origem disso está no Entrudo, uma festim originário da India, trazido para o Brasil por navegadores portugueses no século XIX. Ele consistia em uma "guerra" de excrementos e talco pelas ruas depois da Quaresma, onde também se atiravam ovos dos altos das janelas e davam-se banhos gelados em quem só assistia o mela-mela generalizado. A coisa chegou até a ser proibida lá pelos idos de 1850, por quase sempre terminar em brigas e facadas.

"O Brasil é um país sem memória", dizem os melancólicos promotores culturais, sem saberem o quanto enganados estão. O Entrudo esta aí, modernizado é verdade, mas ainda vivo em nossa sociedade. Tudo pelo bem das tradições.


sexta-feira, 20 de fevereiro de 2004

Eterno Carnaval


Está chegando o Carnaval e, como parte dos saudáveis festejos, a cidade é invadida pela onda do mela-mela. Quem depende de ônibus sabe o que é isso. No período, a garotada confecciona bombas feitas com canos (algo como umas ampolas gigantes) para esguichar toda sorte de melecas e nojeiras nos ônibus que passam. Este é o tempo das viagens fétidas e abafadas, de janelas fechadas. Claro, ninguém quer se arriscar a levar um banho de água de esgoto, óleo queimado ou um ovo podre na cabeça. Todo o cuidado é pouco.

Uma vez eu estava num ônibus quando uma menina que viajava com a cara na janela foi atingida por um jato de água com cal. Foi no finado SETUSA. Lógico que vinhamos alertando. "É bom fechar isso aí...", "Menina, ainda vão te pegar..." Pois bem. Foi só uma questão de tempo para a suspeita concretizar-se. Ainda pingou um pouquinho em mim...

Não faço a mínima idéia de onde vem essa tradição escatológica nem de qual é sua relação com o Carnaval. Protesto de classes? "Vocação do brasileiro ao deboche"? Puro instinto maléfico? O certo é que há cidades em que isso consegue ser coibido sem que ninguém tenha que andar cismado. Por aqui as coisas são meio frouxas. É isso no carnaval, os fogos no São João, o cerol das pipas, os cultos ensurdecedores... Vive-se num clima de "aqui pode tudo" e dane-se quem estiver por perto. No mais, caso saiam, tentem manter as janelas bem fechadas.

Acabei de ler "O pequeno principe". Tão meigo...


segunda-feira, 16 de fevereiro de 2004

Na falta do que postar...

Mais uns daqueles testes bobinhos. Esse eu catei do blog da Lika.



Faça você também Que gênio-louco é você?
Uma criação de O Mundo Insano da Abyssinia


No sábado foi o casamento da nossa amiga Gio. Festa bonita, ao ar livre, tendo como locação o Forte Santa Catarina, o qual ainda não conhecia. O chato dessas festas é que tem tanta gente conhecida que mal dá pra falar com todos como se deve (imaginem como a noiva deve se sentir...). Bom, com perdão do clichê, deixo aqui o desejo de boa sorte para a Gio nessa sua nova vida que começa e, como dizem os franceses: Merd!

Agradecimentos especiais a Dina, pela sua carona providencial.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2004

Transitório


Dias atrás houve uma pequena batida aqui na frente da minha casa. Não foi nada grave ou que rendesse alguma capotagem (como outra que houve dias antes, um pouco mais distante daqui). Claro que vem a vizinhança toda conferir o prejuízo alheio. Ainda não tinha reparado no poder do barulho da batida, que é capaz arrancar as pessoas do aconchego de suas casas, em plena tarde de domingo, seja lá o que estiverem fazendo.

As mulheres passavam descalças. Dentre os homens, pensei ter visto um com um controle remoto na mão, mas deve ter sido só impressão mesmo. O certo é que as crianças adoram, se deleitam por terem presenciado o choque, contando uns pros outros os detalhes da colisão. Os adultos são mais discretos.

Desprezando uma das convenções mais primárias do trânsito, o carro que vinha na via transversal chocou-se contra o que vinha na preferencial. Antes que a perícia chegasse, o rapaz que bateu tirou o carro e foi-se embora, deixando telefone e o número da placa. Depois, soube-se que o "afobado" tinha um parente num hospital que acabara de ser baleado, e rumava para lá o mais rápido que podia. Vai-se saber quem tem razão nesse tipo de ocorrência. O mundo anda muito violento.


segunda-feira, 9 de fevereiro de 2004

O paquerador viário


É assim: se ao seu lado estiver uma moça que lhe agrade, ele puxa papo. Se ela estiver num banco sozinha, ele vai até lá como quem não quer nada e começa a falar. Ou ainda, se a pretendida estiver em pé e de preferência com alguma bolsa ou caderno numa das mãos, ele gentilmente o pede para levar e começa a jogar o papo, partindo do que puder improvisar na hora, seja acerca do clima, do peso dos livros, do mercado de trabalho, etc. Caso ele tenha a sorte da moça não descer antes dele e da conversa tomar corpo até o seu ponto, ele fará o possível para arrancar o telefone dela. E o pior (ou melhor?) é que às vezes ele acaba conseguindo.

O figura mora aqui no bairro e eu o conheço só de vista. Ele já deve ter passado dos 30 anos, faz Letras na UFPB, só anda bem trajado e portando um sorriso de tubarão branco. Faz o gênero "homem-maduro-protetor". Jamais me passou pela cabeça que um tipo como esse fosse adepto dessa prática.

Soube dessas suas peripécias exatamente num dia em que, pela primeira vez, pude vê-lo em ação. Por coincidência, eu e um primo - que já o conhecia melhor do que eu - entramos num mesmo ônibus que ele. Claro que o rapaz em questão já havia ido e sentado ao lado de uma moça que estava sozinha.

Enquanto a coisa se desenrolava dois bancos a nossa frente, meu primo me falava tudo o que sabia sobre os métodos e a trajetória do paquerador. Fiquei bestificado. Ainda não tinha visto esse tipo de abordagem, nem tampouco julgava que ela existisse. Naquela viagem, a escolhida parecia ser uma estudante de enfermagem, que se mostrava nada avessa ao papo.

Descemos todos na mesma parada e ele, sempre sorridente, cumprimentou meu primo e a mim. "É uma pena. Dessa vez nem deu... Mas aquela daquele dia me deu o telefone!", disse referindo-se a outra moça de uma outra viagem de dias atrás, do qual o ataque meu primo havia sido testemunha.

Existe um ditado americano que diz "Nice guys finish last" ("Caras legais ficam pra trás"). Estou começando a crer nisto...


sexta-feira, 6 de fevereiro de 2004

Cinematográfico

Naomi Watts e Charlotte Gainsbourg em 21 Gramas.


Vi esse na quinta-feira e já está mais que recomendado. Esse filme também conta com o Sean Penn no papel principal e é dirigido por Alejandro Gonzalez, o mesmo do tão comentado "Amores Brutos", o que me deixou mais curioso para vê-lo. Ainda na quinta vi na Mostra de Filmes Paraibanos, na Biblioteca Central da UFPB, o vídeo "Jamais vou esquecer quem era mesmo", de J. Audaci Junior. Gostei muito, mas não apenas por ter participado dele. Optando pela ficção, o vídeo rompe com a tradição de documentários e filmes-cabeça que impera por aqui, ficando bem acima da média dos seus contemporâneos. É isso aí. Viva a ficção.

Tem coisa mais cinematográfica do que uma pessoa te ligar no exato momento em que escrevia um email pra ela?

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2004

O momento do ciclo (ou "o eterno retorno")

Enquanto zappeava tediosamente pela programação vespertina do domingo, dei de cara com o CPM 22 no Domingo Legal. E daí? Bom, o CPM 22 é uma banda de hardcore melódico (uma variação do Punk Rock com doses de romantismo adolescente), e o Domingo Legal tem sido nesses últimos dez anos, como se sabe, um dos grandes propagadores da trinca axé-pagode-sertanejo (com o Funk como adendo), os quais são estilos odiados pelos headbangers.

Esta simpatia repentina desse reduto popularesco ao som das guitarras não é de graça. Não é preciso ser tão observador para perceber que nesses últimos anos o poder aquisitivo da população tem caído progressivamente. Aliado a isso, tem-se um esgotamento quase que total dos modismos populares, o que configura um cenário propício a uma possível volta do Rock aos holofotes.

O fato é que essa reconciliação sazonal do Rock com a massa é uma tendência comprovada. Sempre em momentos de recessão, e com efeito, de estagnação cultural, o fãs do Rock mantém-se como podem firmes na "causa" e a Industria não tem o que fazer senão ceder a essa demanda. Para esse anseio cultural e ideológico se transfomar em uma pressão econômica é um pulo, e é aí que o Rock se torna o filão do momento. Foi assim nos anos 60 com a Jovem Guarda e a Tropicália, nos 80 com a chamada "Geração Rock Brasil" e, ao que me parece, é o que pode acontecer nessa primeira década do século XXI.

Os indícios são esparsos, é verdade. Junto com os Detonautas e o Charlie Brown Jr., o CPM 22 não figura como um estandarte ideal para uma retomada do estilo. Nem de longe, o Chorão (do Charlie Brown) ou o Badauí (do CPM 22) têm o peso cultural e a atitude messiânica que Caetano Veloso ou Renato Russo tiveram, mas o efeito catártico que causam na garotada é algo que não se pode desprezar. E para que essa volta do Rock não fique só apoiada nos ombros do niilismo juvenil, eis que nos vem o Skank (bebendo nas fontes sessentistas e com uma música na novela), a Lan Lan e os Elaines (cantando o mais genuíno Rock em português, mas sem "brasilidades") e os Los Hermanos (com arranjos e letras esmeradas, arrancando suspiros da crítica).

É isso. A roleta está girando. Nos resta apenas cruzar os dedos.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2004

Sinestésica


Lave os cabelos no meu suor
Mergulhe, poros a dentro.
Leve o gosto da minha boca
Na sua garganta, onde entro.

Salgada a lágrima que escorre
Silenciosa, como fogo fátuo.
E no seu peito, onde ela morre,
Dissipo-a, com o meu hálito.

Toco imagens em feromônios,
São aromas, em harmonia,
Trilha sonora de tantos sonhos
Em que reges tal sinfonia.

Corre o espasmo na pele
Formigando, e uma explosão
Urgente e tão quente, repele
A dura frieza do chão...


Morada

Quando os homens chegaram , encontraram Dona Lourdes na cozinha, sentada à mesa. A idosa olhava para o quintal, indiferente às grossas rach...