segunda-feira, 29 de março de 2004

Como cães (ou reflexos induzidos a partir de uma circunstância previsível)


Noite. Uma rua. Eu andando nela. À frente, o vazio. No relógio, meia noite e dez. Três quarteirões até minha casa. Passo por um cão que não me dá bola. Postes acesos. Não passam carros. Trechos claros e escuros encadeados. Nenhum vento. Latidos ao longe. Ando rápido. Surpresa. Um vulto surge a frente. Não é sombra de árvore. Caminha no meio da rua. Suor na minha testa. Mantenho o passo. Ele vem em minha direção. Não gosto de Western. Não vejo seu rosto. Tensão. Parece forte. Fecho meus punhos. Não sei se me teme. Muros altos nas casas. Mau sinal. Aumento o passo. Ele mantém. Olhos fixos nele.

Meio quarteirão nos separa. Já o vejo melhor. Gelo na espinha. Gingado estranho. Saio do meio da rua. Abdome contraído. Ele continua no curso. Estou na calçada. Foco no horizonte. Ele na visão periférica. Qual o cãozinho de Pavlov. Saliva ao ouvir a sineta. Tremo se olho pro cara. Presença incomoda. Vejo seu rosto. Descompasso cardíaco. Ele me vê. Mal o suporto. Estou quase correndo. Boca seca. Ele muda sua rota. Vem transversal a rua. Eu o odeio. Anda mais rápido. Vem pra calçada. Instinto de sobrevivência. Fechou o ângulo. Dois passos de distância. Fator surpresa. Muito feio o rival. Agora um braço de distância. Me jogo contra ele. Ele geme. O atinjo com o ombro. Corro. Nem respiro. Corro. Latidos. Nem sinto as pernas. Corro. Chegar. Continuo correndo. Correndo.

Fim do experimento.
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Mais "estímulo-resposta" em: Anna, Ailton, Isabella, Suzy, Larissa, Helber, (talvez) Bruno e algum outro que não tomei nota.


terça-feira, 23 de março de 2004

A prova


Foi rápido. Nada estava combinado. Ela sabia que mais cedo ou mais tarde aconteceria. Começou meio desajeitado, mas pelo rumo que acabou tomando, não parecia que ela o interromperia tão abruptamente. Talvez deva ter sentido medo: não lembrava de ter sido subjulgada daquela forma. Correu pra casa.

Pela primeira vez, ela sentia em sua boca o gosto de uma saliva que não era sua. Só sabia que tinha que provar mais uma vez daquele sabor, embora não soubesse como nem quando beijaria novamente.


Para ver outros textos com o mesmo tema, procure nos links ao lado.



sábado, 20 de março de 2004

Mestre


Fiodor Dostoiévski, autor de "Crime e Castigo". Não há mais o que falar.

Pasmem: Prosesia Crônica atualizado.

segunda-feira, 15 de março de 2004

Ponto de mutação


Falar que o aparato tecnológico desenvolvido nos últimos cinqüenta anos tem alterado completamente as formas do homem encarar o mundo e a história já é um clichê. A exagerada capacidade de captação e reprodução de momentos tem tirado da história a sua possibilidade especulativa que a permeou pela maior parte dos séculos de racionalidade. Não precisa nem ser uma ocasião ou um lugar "importante" para estar submetido a algum artifício de fixação de imagem e/ou som. A tecnologia despreza a imprevisibilidade, desdenha arrogante do nosso espanto ante o inesperado. Dêem boas vindas ao Big Brother.

Foi preciso uma grande sensibilidade e um impulso bastante visionário para George Orwell lançar a noção do "Big Brother" em 1984 (lançado em 1948). Na época, pouca gente entendeu que o tal "Olho que tudo vê" não era uma pessoa, nem tinha por trás de sua intricada rede uma mente vil que responderia por sua impertinência. Com o olhar de anarquista e ex-soldado, Orwell mirou certo na tecnologia e previu o status "divino" (a onipresença) que ela viria ganhar, numa época que ele considerou ser o "futuro".

11 de março na Espanha. Explosões em trens deixam mortos e feridos. Comoção internacional, discursos inflamados, implicações políticas. Dentro de sua limitação temporal, a mídia utiliza-se do momento posterior ao fato para nos reportar ao momento da tragédia. É com isso que estamos acostumados, tem sido assim desde sempre, desde antes de haver a própria mídia. O que diferencia este fato dos demais ocorridos ao longo da história é a presença de uma moça dentro de um dos trens, que no exato momento das explosões tinha sua ligação de celular gravada numa secretária eletrônica, há quilômetros dali.

É isso que a tecnologia faz: ela não nos dá margem à especulações. Não temos mais o luxo de imaginar, em pensar como terá sido aquele acontecimento, aquela tragédia. Sempre vai ter alguém ou algo gravando; haverá uma foto de um turista que aparece uma semana depois ou como nesse caso, um telefonema. Já estará ali diante de nós uma face nem que seja mínima do momento flagrado, da qual toda nossa capacidade de abstração será subordinada. Seremos apenas espectadores, levados a negligenciar o "impulso imaginativo" - receberemos imagens, não mais as criaremos.

Nas últimas décadas enfileiram-se "flagrantes": a morte de Kennedy (e a morte de Lee Oswald, seu assassino), a explosão da Challenger, atentados a figuras influentes, o 11 de Setembro. Um verdadeiro circo de horrores promovido pela presença das câmeras ligadas "na hora certa e no lugar certo".

Podemos imaginar como deve ter sido a ocasião em que o Arquiduque Francisco Ferdinando fora alvejado por um estudante na Sérvia, detonando a Primeira Grande Guerra. Podemos imaginar também como foi a sangrenta deposição da família real russa, ou ainda, a ocasião da morte de Julio César, esfaqueado por todo o Senado romano. Mas, no tocante à contemporaneidade, o exercício especulativo tem sido e será posto de lado em favor da simples recepção de sons e imagens gravadas. Este será o fim da mitificação, das distorções, da inexatidão, da abstração, enfim, do homem como o conhecíamos.



sexta-feira, 12 de março de 2004

Quem é Nerd


Achei num jornal uma lista de fatores que configuram um nerd:

1. Não tem muita habilidade social.
2. Curte ciências exatas.
3. Gosta muito de ler.
4. Adora cinema. É apaixonado por ficção-científica.
5. Joga RPG.
6. Provavelmente já assistiu "A revolta dos nerds".
7. Não se preocupa muito com a aparência.
8. Está muito acima ou muito abaixo do peso.
9. 95% dos nerds usam óculos.

Não sei se eu deveria ou não comemorar o fato de não ser um nerd...



segunda-feira, 8 de março de 2004

Descontando


- Façam uma redação sobre o aborto.
- Professora, em que estilo?
- Vocês podem fazer uma dissertação ou uma narração.
- Narração? Oba!


Dessa vez, não. Chega desse tipo de artifício. Eu não fiz um conto. Não vou tentei inventar alguma historinha que tivesse o tema desta semana como mote. Desde o colégio tem sido assim: narrando, narrando... Na verdade, o ato de narrar sempre me fora um modo de escapar, sempre uma desculpa pra lá de esfarrapada pra fugir da dureza das argumentações ou de uma descrição pouco acurada.

Sem ficção por hoje. Sem desculpas esfarrapadas.


domingo, 7 de março de 2004

sexta-feira, 5 de março de 2004

Me engana que eu gosto


Parece que o grande segredo para o êxito na vida é partir do pressuposto que todos os demais são idiotas. É claro que a maioria sempre consegue ser mais esperta que do você, mas o batalhão de tolos restantes justifica a minha inferência inicial. Se os golpes existem é por que funcionam, e os idealizadores (cegos pela "glória" alcançada) não conseguem guardar sua receita em segredo. Para atuar, os golpistas precisam apostar no fato de que todos nós somos "inocentes", e que os seus golpes ainda estão longe de serem "manjados". Tal atitude corajosa os tornam seres, no mínimo, admiráveis.

E a Internet dificilmente ficaria livre da presença deles, tendo ela já ganho o status de espaço socialmente constituído. Isso é muito frustrante, porque como se não bastasse as pilhagens do mundo real, agora temos que aturar os "espertinhos" que nos abordam nas navegações. Reparem no que me chegou por email:


Mensagem Importante do Banco do Brasil, leia com atenção:

1 - Foi determinado através do sistema voltado à segurança de transações online do Brasil, é expresso que todos os clientes do Banco do Brasil deverão repassar seus dados bancarios imediatamente para que sua conta entre no mais novo sistema anti-fraude no sistema de internet banking.

2 - Com o novo sistema o Banco do Brasil poderá verificar a autenticidade dos dados fornecidos, a fim de verificar a veracidade dos mesmos. É importante ressaltar que só entrará para esse novo sistema anti-fraude as contas de clientes que forem acessadas a partir de 30/08/2003.

Para isso acesse agora: http://www.bb.com.br

Banco do Brasil, sempre preocupado com você.



O indício mais elementar de que isso se trata de um golpe fica visível ao acessar o link do banco que vem nessa mensagem. Ao invés de aparecer um singelo "www.bb.com.br" na barra de endeços, surge uma imbricada sequência de números e dígitos de toda a sorte, que nem de longe se parece com o endereço de um banco que é um dos mais populares do país.

Nesse caso, a crença do rementente é que o destinatário desconheça totalmente o fato dos bancos jamais cobrarem cadastros pela Internet. E o que torna isso ainda mais engraçado é que eles mandam esses emails na esperança da pessoa 1) ter conta no banco e 2) ser afobada ao ponto de enviar sua senha pela rede. Eu, por exemplo, jamais tive conta nesse banco.

O chato é que sempre vai ter gente que vai cair nesse tipo de golpe, envolvida pelo tom grave e pela confiabilidade passada pelo texto do email. De conta em conta zerada, o golpe no Brasil vai conquistando seu espaço no hall já ocupado pelo "futebol" e pelas "mulheres bonitas"...


segunda-feira, 1 de março de 2004

Peculiarmente dourado


Os membros daquela familia, como muitos de muitos lares pelo mundo, não haviam assistido nenhum dos filmes que concorriam a alguma estatueta no Oscar. Mesmo assim, desde o início da transmissão da cerimônia, todos estavam lá, em volta da televisão.

Na verdade a maioria deles só estava mesmo. O pai e o filho mais velho dormiam cada um num sofá e a mãe, que costurava, às vezes olhava de soslaio pra TV, em seus devaneios de agulhas e linhas. Só a menina que tinha os olhos há dois palmos do aparelho.

Ela jamais parara para pensar no motivo daquilo tudo lhe fascinar tanto. Sabia que aquelas pessoas haviam feito coisas importantes, e olhava pra elas como um fiel olha para uma imagem sob o andor. Para a mocinha, trechos de filmes e discursos de agradecimento corrrespondiam a uma só realidade: aquele pessoal era bonito e bem vestido demais para "existir na vida real".

- Essa TV tá com defeito... Mal se entende o que se diz... - Balbucia o pai ao iniciar um novo cochilo.

Ela sabia que não era defeito. Só não sabia como explicar que a tradução simultânea estava no mesmo volume do som original da festa, o que misturava tudo. Ainda assim, ela seguia assistindo com atenção, imaginando que graça aquele palavrório todo poderia ter para aquele pessoal lá rir tanto...

Mas o que mais lhe impressionava era o fato daquele programa estar sendo transmitido ao vivo para o mundo todo. Ficava repetindo na cabeça "transmitido-ao-vivo-para-o-mundo-todo", o que lhe animava muito. De alguma maneira, sentia-se participante daquilo tudo por a sala da sua casa fazer parte do mundo.

De repente, a menina volta-se para sua mãe, intrigada:

- Mãe, meu nome tem alguma coisa a ver com esse programa?

- Hã? Ah, tem sim. Foi idéia daquele lanterninha do cinema, amigo do teu pai. Oscarine... Achei lindo...


::: É com satisfação que vos comunico que um texto meu foi publicado no MINILOMBRAS. É bem curto, de acordo com a proposta do site. Quem ainda tiver com paciência, é só clicar aqui.


Morada

Quando os homens chegaram , encontraram Dona Lourdes na cozinha, sentada à mesa. A idosa olhava para o quintal, indiferente às grossas rach...