sexta-feira, 20 de abril de 2007

Ordinária


Na manhã, a primeira coisa que se ouve são os passos decididos de Martinha, escada acima. Vai com uma sede que só homem pode matar.

Ela bate, e Petrônio a manda entrar com a voz de sono. A primeira visão que ele tem ao acordar faria o cético mais encarniçado balançar nas suas bases. Era Martinha no lastro da porta, e seu corpo ficava ainda mais dourado na contra-luz das seis e meia. Isso sem falar da blusa amarrada com aquele nozinho infame, deixando transparente só o bastante para imaginação trabalhar; e o short, uma tira de pano que se muito tinha quatro dedos de crueldade. Pois era ela, com todo o seu poderio de carne e vontade, pra cair em cima de Petrônio assim que ele escovasse os dentes.

É sem tomar café mesmo - e tem café da manhã melhor? Com dois pulos ela está debaixo do lençol, pronta para ser torcida, virada e revirada, arrepiada até as sobrancelhas. Petrônio nunca resiste, apesar de andar meio enjoado. Ela também já está enjoada disso, e dele, mas àquela hora, e àquela gastura, vai com o que tem a mão, e que mão, e que boca, e que tudo. Petrônio se perguntava se uma pessoa de dezoito anos já teria vivido o suficiente para aprender tanta coisa. Quase milagres. Milagres de um amor barato, num hotel barato com o parceiro barato. Martinha achava isso melhor do que ficar até a hora do almoço ouvindo história de chifre na manicure.

Nove da manhã e Martinha sai do quarto de Petrônio com o cabelo molhado, cheirando a uma lavanda esquecida ali pelo hóspede anterior. Depois de transformar o colchão num charco de suor, de se lambuzar inteira de alegria e de se sujar até a alma, ela não poderia sair daquele jeito, mesmo contente. Voltava rápido para acalentar com todo amor do mundo o filho da patroa, que jurava que ela ainda não tinha dado o primeiro beijo. Martinha era assim, batia na mãe, tirava dinheiro do avô, e trepava com o meio-irmão sem perder um segundo para hesitar.

sábado, 7 de abril de 2007

A primeira noite de Ramiro


Tempos depois, quando se lembrasse do dia que Adelaide bateu na sua porta, Ramiro teria certeza de que aquele fora o momento mais difícil da sua vida. "O senhor pode me arranjar um copo d'água?", disse a moça com a firmeza de quem não tem tempo para parecer desamparada. De fato, ela não precisaria dizer nada para que se atestasse o seu real desamparo. Mas apesar do cabelo desgrenhado, do pó do rosto, e dos andrajos, não passaram dois segundos para Ramiro reconhece-la. Durante anos desejou aquele reencontro, mas depois de um tempo, passou a querer tudo no mundo, menos revê-la. Na época que ela bateu na sua porta, após os quinze anos de sumiço, Ramiro já sentia um avesso de saudade, era uma repulsa pelo passado como um desfigurado tem pelo espelho. Mas a questão era que Adelaide estava agora diante dele, e ele não sabia o que fazer.

Não só sede, ela também tinha muita fome, nem sabia há quantos dias não comia. E Ramiro lhe serviu prontamente, lhe atendeu em tudo, sem dizer uma palavra, sem fazer nenhuma menção ao passado, nem ao que viveram, nem ao que deixaram de viver. Junto àquele silêncio perturbado, Ramiro carregava um indisfarçável estupor, semelhante ao de quando a viu pela primeira vez. "O senhor mora sozinho?", perguntou ela, e Ramiro, sentado na sua frente, com os olhos vidrados, disse que sim com a cabeça, sem atinar para as mesuras sem propósito de alguém que lhe fora tão intimo. Depois da sua vergonha pública, Ramiro se mudara para uma propriedade fora dos limites da cidade, mais para se livrar do peso daqueles malditos olhos piedosos, e de toda a compaixão coletiva que a sua desgraça lograra. E Adelaide, mesmo exausta e faminta, ainda conseguia ter lucidez para estranhar a hospitalidade de um homem que vivia sozinho numa casa tão afastada. O jeito como ele lhe olhava foi só mais um dos sinais para que, enquanto se saciasse, ficasse alerta para qualquer coisa que pudesse acontecer.

Ramiro começou a ver algo diferente nos modos dela, parecia outra pessoa, se bem que poderia ser coisa da sua cabeça, nunca confiou muito nas próprias impressões, ainda mais com toda essa vertigem. Esteve calado desde que ela entrara na casa, e já era noite quando, livre de qualquer pretensão, conseguiu perguntar, no meio de um engasgo, para onde ela estava indo. Adelaide, assustadiça, fez um gesto vago, e Ramiro apontou a rede enrolada no canto da sala. Enquanto ela se ajeitava no leito e relutava em se entregar ao sono, Ramiro, no seu quarto, percebia no meio do seu aturdimento que depois dos quatro anos de um namoro exasperado, e dos quinze, exilado de si mesmo, ele finalmente passaria uma noite sob o mesmo teto que a sua amada Adelaide, e ainda que não dividissem a cama, aquela era uma noite mágica, uma noite muitíssimo esperada, adiada desde aquele sete de maio em que ele não viu a sua noiva entrar com o pai na igreja. E nem poderia, porquê no momento em que ele lá no altar vivia os primeiros minutos de uma via-crucis que já durava quinze anos, Adelaide, longe dali, partia sem saber para onde, no lombo de um cavalo, após ser tirada de dentro da própria casa por um homem, um desconhecido de quem só se livrou quando, quinze anos depois, conseguiu pular da carroceria de um caminhão que a levava para outro cativeiro. Foi assim que ela bateu a cabeça e, desmemoriada, vagou por vários dias até encontrar uma casa, a casa de Ramiro, para quem trouxe a doce lembrança de que um dia foi vivo.

Morada

Quando os homens chegaram , encontraram Dona Lourdes na cozinha, sentada à mesa. A idosa olhava para o quintal, indiferente às grossas rach...